VÔO URBANO. POR SIVUCA
No último fim de semana, Joãozinho foi visitar seus pais que moram em uma cidade litorânea. Levou seu parapente, afinal um voador esquece a mala de roupa, mas nunca esquece seu parapente, não é mesmo?
Tomou café com a família e então, quando todos se ocuparam de alguma atividade pré-praia, Joãozinho jogou sua mochila nas costas e foi até a decolagem. Já fazia algum tempo que ele não voava, tinha feito uma cirurgia no começo do ano e ainda estava em recuperação, naquele enjoado período de fisioterapia. Mas eram males que vinham para bem, como dizia sua mãe, sua tia, sua avó e mais um monte de vizinhas e outras pessoas. Então, não poderia forçar muito a situação, procurou se certificar de que a condição de vôo estava realmente adequada antes de sequer subir a montanha.
Joãozinho sabe que em muitos lugares de vôo isso não é possível, afinal sem estar na montanha fica difícil prever ter uma idéia mais precisa das condições. Talvez seja por isto que Joãozinho raramente perdia um dia de vôo enquanto vários amigos seus terminavam enchendo a cara de cerveja na cidade por medo de subir a montanha e descobrir que não ia dar vôo… muito típico, muito típico, dizia ele… No verão, como acompanhar a velocidade com que a condição muda, não é? Só subindo a montanha mesmo e “montando guarda” até que houvesse condições de vôo. Mas aqui, nesta cidadezinha litorânea, com uma condição tão típica, tão tranqüila, dava para olhar para cima e tranquilamente constatar se valia à pena subir ou não e por sorte ou merecimento, valia a pena subir.
Joãozinho aproveitou o teleférico que era uma moleza, o fim do eterno drama das caronas e sentado na cadeirinha mergulhou dentro das belezas da mata atlântica enquanto os cabos içavam nosso herói. No verão, há uma flor roxa que dá muito, mais que chuchu na serra, e que embeleza qualquer caminho. Como não poderia deixar de ser, a cadeirinha do teleférico passava rasante em um tapete destas flores tão bonitas que enchiam os olhos de qualquer um que tivesse vontade de guardar na memória, as belezas do mundo que nos rodeia.
Encontrou alguns amigos, e seguindo a sugestão de um deles, particularmente querido, fez um pequeno plano de vôo, que consistia num lift básico nos prédios da beira-mar. Ora ora… Quem esperava que houvesse um planejamento mais pretensioso, como fazer três loopings seguidos ou encontrar com o zero grau no meio do verão, estava esperando demais. Joãozinho estava radicalmente tranqüilo e convicto de que o mero e básico fato de dependurar-se no céu após tanto tempo, cumpriria de forma mais que eficiente, a tarefa de preencher a lacuna do excesso de chão com o qual Joãozinho vinha convivendo há algum tempo.
O interessante disto é constatar que é inteiramente possível um excesso tornar-se uma lacuna, não é mesmo?
Abriu o velame, arrumou a selete, vestiu o capacete, inflou, observou, correu e voou… Lá estava nosso querido Joãozinho sentindo o vento batendo no seu rosto. Rapidamente ele ia remoçando e transformando-se em uma criança. Ninguém tinha te contado que muitos de nós voadores voltamos a ser crianças assim que tiramos os pés do chão. Talvez muitos nem sequer tenham percebido isto, mas é muito comum sim, viu Joãozinho?
Ganhou alguma altura e logo depois partiu para a “missão” em direção a orla oceânica banhada de carros, pessoas, guarda-sóis, crianças correndo, pipas, pranchas, alguns barquinhos e a imensidão do Oceano Atlântico que lhe dava boas vindas. O vento soprava de sudoeste, perfeito para o passeio e com um pouquinho de ousadia era possível se manter tranquilamente a dez, vinte, quase trinta metros acima do último andar dos edifícios.
Agora era curtir a paisagem, acenar para senhoras nas janelas e crianças nas piscinas das coberturas, imaginar o que um casal de namorados tinha para discutir em uma cobertura tão cara, divertir-se com o desespero dos cães diante daquele OVNI que aterrorizava suas terraças. Joãozinho deliciava-se com o traçado das ruas e lembrava que o Google Earth tentava imitar justamente aquela visão única e tão privilegiada. Carros buzinavam, pessoas paravam o que estavam fazendo e muitas outras nem percebiam que Joãozinho sobrevoava a avenida como se fosse mais um corriqueiro meio de transporte, perfeito para quem quer sair daqui e ir até ali.
Ora perdia um pouco mais de altura, ora ganhava um pouco mais e essa instabilidade trazia a pimenta e o sal de seu passeio, tão simples, tão básico, mas tão definitivo, tão delicioso quanto qualquer outra conquista que se pode fazer voando. Joãozinho sabia que o que contava não era a conquista, não era o fim, mas sim o prazer, o meio de fazer aquilo que lhe dava prazer. De repente Joãozinho era Lucky Skywalker com sua nave espacial fazendo rasantes na estrela da morte, de repente era George Jetson indo para o trabalho, de repente era o Superman indo salvar Louis Lane, de repente Joãozinho era novamente ele mesmo e nada mais, deixava de ser funcionário, parente, membro, candidato, honorário ou requerente, deixava de ser todas as coisas para ser única e exclusivamente… Joãozinho.
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